Descrição
Professora de sociologia na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutora pela USP, Silvia Viana leva a sério o aparente escárnio da designação “reality show” em Rituais de sofrimento, novo livro da coleção Estado de Sítio publicado pela Boitempo.
“Não lidamos aqui com um ritual como outro qualquer, não se trata de uma festa ou do consumo, ambos cerimoniais oferecidos aos deuses do prazer. Trata-se de algo mais perturbador, pois o que se vê nos reality shows é a proliferação de rituais de sofrimento”, afirma a pesquisadora no primeiro capítulo.
Silvia Viana analisa tais rituais e mecanismos de dominação em vários produtos televisivos da indústria cultural brasileira, com especial atenção ao maior deles, o Big Brother Brasil, no ar há treze anos. O estudo também abrange programas e filmes de Hollywood que perpetuam a mesma lógica brutal. Assim como no BBB, o assassino Jigsaw da franquia Jogos Mortais, por exemplo, não almeja a morte/eliminação de suas vítimas: ele quer que elas sobrevivam. Mais que isso, que sobrevivam a qualquer preço.
Quais são as molas que movem esse lado fake e nem por isso menos real do mundo em que vivemos? Onde estão as roldanas que dirigem as cordas, quem são as figuras que elas agitam, como o conjunto se fecha sobre si mesmo sem deixar lacunas? Silvia reflete sobre essas questões em um relato clínico, com traços firmes e finos, sem poupar nada nem ninguém. Segundo o sociólogo e professor da USP Gabriel Cohn, a fatura desse livro parece seguir uma regra básica: quanto mais o tema se revela repugnante, tanto mais refinada deve ser a sua exposição. O resultado é uma escrita em que não cabe o gesto banal da indignação moral nem a repulsa à má qualidade estética – ambas provocações já programadas no espetáculo -, mas algo mais fundo.
Apesar de permanecer na sociedade o debate em torno de um de seus discursos de origem, o mote do espetáculo da realidade e seu maior apelo junto aos telespectadores é a concorrência, não o voyeurismo. “É esse o fundamento que atrai o nosso olhar, pois é o fundamento de nossa reprodução social”, afirma Silvia.
Para além dos inúmeros recordes acumulados pelo programa Big Brother Brasil, é digno de atenção o espírito que, ao longo de três meses anuais, toma o público. A disputa hipnotiza as cidades como um espectro: sem entender como, sabemos nomes e acontecidos, o programa toma o ar e sufoca. É onipresente; está em todas as mídias e em todas as conversas; suscita contendas nos ônibus e táxis. Mas é na internet que o comprometimento do público toma corpo: sites, grupos de debate, blogs, salas de bate-papo, tuitagens, comunidades virtuais e campanhas inflamadas para a eliminação de fulano ou beltrano proliferam e deixam o rastro do dinheiro, trabalho e tempo oferecidos gratuitamente ao show de horror. Em espaços de reclusão, que pela própria dimensão já inspiram pesquisas acadêmicas, é unânime o desejo do embate feroz entre os aprisionados. Neles, impera o princípio muito bem formulado pelo organizador da rinha: importa muito mais a queda que a salvação. O princípio violento do BBB não é oculto, pelo contrário, o próprio programa faz questão de afirmá-lo constantemente – e funciona inúmeras vezes como propaganda – ao enfatizar o caráter eliminatório e cruel do jogo. Cada edição impõe a seus participantes situações mais árduas. “Não é um jogo de quem ganha. É um jogo de eliminação. Esse saber generalizado, no entanto, não impede que uns se submetam e outros castiguem, nem que aqueles que se submetem também castiguem. Pelo contrário, a participação é a pedra fundamental do espetáculo. Mais que a aceitação passiva desse princípio nem um pouco subjacente, o programa conquista o engajamento ativo, frequentemente maníaco, nessa engrenagem de fazer sofrer”, afirma Silvia.
Dividido em quatro partes, “Show de horror”, “Das regras”, “Dos jogadores” e “Das provas”, o livro conta também com o posfácio “Breve história da realidade: sofrimento, cultura e dominação”, do professor-adjunto de filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora Pedro Rocha de Oliveira, e com texto de orelha assinado por Gabriel Cohn
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